Projeto Interliga: a história real de um sonho

Música, poesia, teatro e paixão mudam a vida de crianças em Riachuelo

Equipe Interliga – Foto: Felipe Salustino

Por Elias Bernardo e Felipe Salustino

Luzes apagadas, silêncio visceral. Vai começar um espetáculo encenado por artistas muito especiais. No palco, a cortina iluminada está posta. E deve permanecer assim até o final da apresentação. 

Bem atrás dela, a simetria dos corpos dos atores é desenhada pelas sombras que ali se movem e atraem o olhar curioso da plateia, formada em sua maioria, pelas mães dos próprios artistas. A música de fundo ensina que ‘é preciso ofertar o amor mais sincero, o sorriso mais puro e o olhar mais fraterno’. 

O Teatro de Sombras, descrito acima, emociona o público. Os aplausos que se seguem ao fim da apresentação de crianças e adolescentes do Projeto Social Interliga, estão carregados de significados, tanto para quem assiste ao espetáculo quanto para quem o faz. 

Por trás daquela cortina estão fragmentos dos sonhos de sessenta crianças e adolescentes da cidade de Riachuelo, no agreste potiguar. Sonhos de sessenta famílias, irrigados dia após dia com boas doses de persistência e superação. O desejo ali é de que seja assim até o momento em que, finalmente, cada sonho se tornará real. 

Ao som de Verdades do Tempo, de Thiago Brado, o teatro de sombras comove e faz o espectador refletir, especialmente pela essência das histórias em si. Afinal, ali estão sendo contados os sonhos de quem os conta. Sonhos que começaram a partir do desejo de transformar a pequena Riachuelo, distante cerca de 78 km de Natal, a capital do Rio Grande do Norte. 

Tudo começou em 2012. A então estudante de Biblioteconomia, Lorayne Kelly, à época com 21 anos, tinha deixado a pacata cidade para viver e estudar em Natal. Mesmo com a rotina exaustiva da faculdade, ela decidiu que era hora de dedicar o pouco tempo disponível ao sonho de infância: transformar a vida das crianças do lugar onde nasceu e viveu por mais de duas décadas. 

Zelosa e devotada ao direito de sonhar todos os dias, naquele ano Lorayne voltou a Riachuelo para fazer despontar o Encontro da Leitura, grupo formado por quinze crianças. O foco, como o próprio nome indica, era a leitura. 

“Fui até Nossa Senhora da Conceição [um dos bairros de Riachuelo] com alguns livros. Chegando lá, comecei a ler uma historinha. Quando terminei, nem tinha percebido, mas havia muitas crianças a minha volta, todas maravilhadas com a história que eu tinha acabado de ler”, relembra Lorayne, hoje com 28 anos.

Formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a bibliotecária faz questão de destacar o quanto a Universidade foi essencial para a concretização do sonho. 

“O interesse por fazer algo como o Interliga cresceu quando fui trabalhar no Núcleo de Educação da Infância (NEI) da UFRN. Lá, todas as crianças tinham acesso aos livros e, mais do que isso, elas tinham prazer em estar ali. Eu comparei as duas realidades e pensei: por que as crianças da minha cidade não têm essa mesma experiência? Então, decidi voltar para tentar fazer aqui o que eu fazia lá”. 

Entretanto, o projeto só ganharia o nome e a configuração que tem hoje em 2015, quando o Trilhas Potiguares desembarcou em Riachuelo. O Trilhas Potiguares é  o maior projeto de extensão da UFRN, que leva ações para pequenas cidades do interior do estado. 

As atividades do programa despertaram na bibliotecária o desejo de inserir novas ações ao grupo. Foi assim que, partir daquele ano, a turma passaria a se chamar Projeto Social Interliga, ancorado em cinco ações: Leitura, Dança, Música, Teatro e Artesanato.

A inserção da música fez o projeto alavancar e atraiu de vez o interesse de crianças e adolescentes da cidade. Reestruturado, o grupo se viu diante de um problema crucial: um local para poder realizar os encontros. 

Lorayne não dispunha de espaço suficiente para reunir os componentes e os instrumentos musicais em um mesmo lugar. A solução foi usar o quintal da própria casa, apelidado carinhosamente pela turma de “Quintal Cultural”.

Mas os pequenos se multiplicavam a cada encontro e logo foi necessário buscar um espaço maior. Assim, a quadra de esportes de uma escola do município passou a acolher as reuniões do grupo. 

Como o projeto não parava de crescer, a turma mudou o ponto de encontro para a Secretaria de Educação da cidade. Contudo, havia uma barreira: a locomoção até esses locais era complicada, por causa dos instrumentos que os integrantes precisavam transportar de um lugar para outro. 

A solução surgiu quando a avó de Lorayne, que morava ao lado da casa da bibliotecária, decidiu se mudar. A residência de três cômodos perdeu as paredes divisórias para se transformar em uma espécie de salão, capaz de  abrigar os sessenta componentes, além de todos os equipamentos utilizados por eles. O grupo ganhou o novo espaço graças a um reforma feita pelo pai de Lorayne, que é pedreiro.

Hoje, o Interliga tem um acervo instrumental diversificado. São flautas, violões, teclados, sanfonas, xilofones, escaletas, baterias e ukulelês. “Eu gosto de tocar flauta, violão e escaleta”, confidencia a pequena Ana Júlia, 10, de olhar e sorriso tímidos.

Em comum, o nome e algumas outras paixões

Os três se chamam Pedro, vivem na mesma cidade e adoram estudar. Desde muito cedo, as histórias de vida de Pedro Lucas Vicente, Pedro Lucas Caetano e Pedro Leonardo estão entrelaçadas por várias paixões em comum. Duas delas, porém, já ocupam um cantinho especial no coração de cada um deles: a música e o Projeto Social Interliga.

“Eu gosto do Interliga porque é um projeto que mudou completamente a minha vida”, entrega Pedro Lucas Caetano, 12. Muito concentrado, o garoto revela suas preferências musicais. Pedro gosta de tocar a canção Meu Abrigo, de Thiago Brado e é fã do cantor, assim como todo o grupo. 

O garoto também não tem dúvidas quando precisa contar qual instrumento musical gosta mais. “O ukulelê me encanta. É um instrumento fácil de tocar e tem um som gostoso de se ouvir”, diz, referindo-se ao instrumento de quatro cordas e origem havaina, que lembra uma mistura de violão com banjo. 

O segundo Pedro do trio tem 15 anos, mas ostenta modos de gente grande. Bem articulado, o garoto de expressões gentis está no projeto desde 2017. Pedro Leonardo é fascinado por Matemática e, claro, adora música. 

“Eu toco flauta, um pouco de escaleta e pretendo aprender violão. Eu me identifico muito com a flauta porque foi o primeiro instrumento que eu aprendi a tocar e é muito fácil”, comenta. “Mas acho o violão um instrumento lindo [de se tocar]”, emenda. Pedro Leonardo gosta de rap e é fã de Projota.  Também gosta de sair com os amigos, assistir a seriados e animes.

Atencioso, Pedro Lucas Vicente, 10, é o mais novo dos três xarás. Corinthiano, um dos hobbies do pequeno é jogar futebol. “Aqui no Interliga eu faço diversas atividades. Gosto muito do momento da leitura, mas a atividade que me deixa mais tranquilo é tocar escaleta”, afirma. Pedro pretende ser advogado. Um sonho que inunda o coração da mãe, Maria José Vicente, a dona Zeza, de satisfação.  “Eu incentivo. Será um orgulho”, derrete-se a dona de casa.

Como funciona o Interliga

O foco das ações do Projeto Social Interliga ainda é a Leitura. Por isso, um lugarzinho da casa de Lorayne é reservado para os livros. É lá que as crianças se reúnem para ler e viajar pelo universo encantado das palavras. Os momentos para a leitura são os únicos onde os integrantes silenciam para dar voz à imaginação. O olhar atento a cada página traduz o deslumbramento dos pequenos pelas histórias. 

Quando não estão lendo, as crianças se revezam em outras atividades. Tudo cuidadosamente pensado e articulado por Lorayne e a irmã. Elas têm métodos para desenvolver, da melhor maneira possível, todas as atividades. 

No que diz respeito à Música, por exemplo, quando chegam ao projeto, as crianças começam pelas noções básicas de  flauta doce. Só depois é que o integrante opta por aprender a tocar outro instrumento. Para ensinar à turma são utilizadas cifras melódicas, com o uso de notinhas repassadas às crianças até que elas consigam assimilar a harmonização de cada melodia. 

“Nós fazemos dinâmicas com sonoridade: toca-se uma nota e as crianças precisam descobrir que nota é aquela. É uma forma de aprender sem tanta rigidez e de uma maneira prazerosa”, explica Lorayne. O grupo tem uma espécie de hino. É a Asa Branca, do mestre Luiz Gonzaga, primeira canção ensinada a quem chega ao grupo. 

Já para o Teatro, são trabalhadas algumas vertentes, como o Teatro de Sombras e o Teatro de Luz Negra. No Teatro de Sombras toda encenação é feita atrás de um pano branco. As crianças utilizam acessórios fabricados com papelão por elas próprias. Um refletor ajuda a transmitir o cenário ao público. Tudo feito em tempo real. 

Para o Teatro de Luz Negra, as crianças se vestem com um figurino inteiramente preto. Nas mãos, luvas brancas. Nesse caso, não há cenário. Quando as luzes se apagam, várias mãozinhas entram em cena acompanhadas de um fundo musical, coreografando mensagens de esperança, união e acolhida. 

As duas formas de se fazer teatro foram pensadas a partir de um problema detectado no começo do projeto: falta de financiamento para a implementação das ações.   

“Nós não colocamos o dinheiro acima de tudo. As luvas utilizadas no Teatro de Luz Negra são doadas pelas próprias crianças depois do desfile de 7 de Setembro. São saídas que não dependem de tantos recursos financeiros. O Interliga acontece graças à união e à dedicação dos componentes. Isso faz toda a diferença no projeto”, explica Lorayne.

As despesas com apresentações fora da cidade ficam por conta dos pais de cada integrante. Segundo Lorayne, todo esforço é bem-vindo. Os instrumentos costumam ser doados. Os figurinos são reaproveitados ou produzidos pelo próprio grupo.

‘O Interliga é um projeto de vida’

A integração entre Arte e Educação faz do Interliga um canal de transformação para muitas famílias. A inspiração vem do educador Paulo Freire, conhecido internacionalmente pelo método revolucionário de ensino que reúne formação de leitores e criação do pensamento crítico. Tudo de acordo com a realidade onde cada indivíduo está inserido. 

Em 1963, Freire ensinou 300 adultos a ler e a escrever em menos de dois dias, em Angicos, cidade do sertão potiguar. Para se ter uma ideia, o tempo de viagem entre Riachuelo e Angicos é de aproximadamente uma hora e meia. 

Parafraseando o educador, Lorayne acredita que a educação mudas as pessoas e as pessoas transformam o mundo. E uma das mudanças mais visíveis é o comportamento dos integrantes do projeto quando estão na escola. Urias Teixeira é professor polivalente da rede estadual de ensino. Segundo ele, o bom comportamento e as excelentes notas são o destaque do grupo. 

“Me lembro que dei aula para um aluno muito levado um tempo atrás. Três anos após começar a participar do projeto, houve uma mudança significativa de comportamento. O garoto começou a frequentar regularmente as aulas, sempre levando consigo sua flauta. Ele passou a se interessar pela escrita e nas horas vagas sempre me perguntava: ‘Professor, posso tocar um pouco?’”, entrega. “É um projeto sensacional”, revela Urias.

Mas, qual seria o segredo para para se alcançar esses bons resultados? A resposta pode ser notada no olhar carregado de entusiasmo de Lorayne ao falar do projeto. 

“A palavra-chave por aqui é satisfação. Para mim, não há cansaço. Eu vivo mesmo esse momento junto com eles. Nós dividimos todos os ensinamentos e isso faz uma diferença enorme em nossas vidas. Por isso mesmo, o Interliga é um projeto de vida”, confidencia. 

Segundo a bibliotecária, existe um detalhe no projeto que o torna ainda mais singular: o empenho dos pais e da irmã em colaborar com o grupo. “Sem minha família eu não teria chegado até aqui. Meus pais são os pilares do projeto, porque eles me dão todo o apoio necessário. Além desse espaço, onde antes era a antiga casa da minha avó, a gente utiliza praticamente toda a casa dos meus pais”, comenta a bibliotecária. 

A irmã de Lorayne auxilia em todas as atividades desenvolvidas com as crianças. Toda essa união em torno do projeto reflete no aprendizado de cada integrante do grupo. Solidariedade, paciência e amizade são valores muito presentes na turma. 

“Nada do que vivemos faz sentido se não tocarmos o coração das pessoas” (Cora Carolina)

Os planos de Lorayne não se reservam somente a incentivar o bom desempenho dos alunos em sala de aula. Estimulados por ela, o sonho de cursar uma graduação na UFRN já faz parte da vida de vários componentes do Interliga.“Muitos aqui nem conheciam a Universidade Federal. Vivi uma experiência indescritível por lá. Eu sei o quanto é importante ouvi-los dizer: Lorayne, meu objetivo é conseguir estudar na UFRN”, relata comovida a bibliotecária.

‘Nada do que vivemos faz sentido se não tocarmos o coração das pessoas’. A frase da poetisa e contista, Cora Coralina, parece ter sido escrita sob medida para descrever a dedicação de Lorayne. Talvez por isso, ela seja tão cortejada ao sair de casa.  A jovem de sorriso doce e olhos cor de mel não sai às ruas sem que ouça de alguma criança: “Tem vaga para mim no Interliga”?

“Eu quero que as crianças tenham sempre mais oportunidade e motivação, que se inspirem por meio do nosso projeto”, comenta Lorayne. 

Talvez ela ainda não saiba, mas os pequenos enxergam ali o exemplo mais latente de motivação e inspiração. Para além das aspirações profissionais, o Interliga tem instigado a reproduzir roteiro semelhante àquele que dá vida ao projeto. 

“Eu quero seguir uma carreira ligada à Música e fundar um projeto igual ao Interliga. Eu quero, de alguma forma, dar continuidade ao que Lorayne vem fazendo, porque acho algo muito bonito”, confessa Pedro Leonardo.

As sementes foram plantadas em terreno fértil. Agora, Lorayne mal pode esperar o momento de colher os frutos. “Como eu me imagino daqui a dez anos? Isso já passou mil vezes pela minha cabeça, principalmente por causa do olhar de cada um deles”, reflete. 

“Bem, eu vou me sentir grata por todas as crianças que estão hoje no projeto e por perceber que cresceu uma sementinha no coração deles. Fico imaginando o momento em  que eles vão chegar até mim e dizer o quanto esse projeto impactou na vida de cada um. Tenho certeza de que vai ser gratificante demais”, finaliza.

Deixe um comentário